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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Não sejam maus
A estrutura intelectual do Ocidente assenta na idéia otimista de que o mal nasce da ignorância
EU JÁ SABIA que o assunto não
era pacífico. Mas insisti. Na
última coluna, desci na cave
do criminoso austríaco que, durante
24 anos, seqüestrou, violou e engravidou a própria filha. E uma parte
dos leitores se recusou a descer comigo. Pior: alguns escreveram para
esta Folha, indignados com o cronista. Não gostaram do tom cômico da prosa e das meditações pessoais sobre o mal.
O tom cômico é inevitável, meus
amores. Uma coisa é violar a filha.
Outra é seqüestrá-la durante 24
anos. Tudo isso é tragédia. Ou, como dizem os ingleses, "no laughing
matter". Mas juntar duas tragédias
num crime só, peço desculpas, é furar os limites do imaginável. Quando tal acontece, a nossa racionalidade é jogada em território virgem
e absurdo. E isso é comédia.
Aliás, o próprio criminoso tem
contribuído para a farsa. Nos últimos dias, os jornais europeus relataram as declarações de Josef
Fritzl na cadeia. São declarações
que procuram justificar os seus
atos. E que me fazem rebolar de
riso.
Segundo Fritzl, a filha andava
com "más companhias". Fumava.
Bebia. Provavelmente namorava.
Seqüestrá-la e violá-la durante 24
anos foi uma forma de a afastar das
drogas, dos rapazes e das discotecas. Haverá alguém que duvide da
eficácia do método?
Claro que, confrontados com a
terapia, talvez seja possível dizer
que 24 anos em cativeiro são um
exagero. O próprio Fritzl admite
que sim. Mas a culpa não é dele,
acrescenta em novas declarações.
A culpa é dos nazistas, afirma ainda, que incutiram nele uma educação de disciplina e intolerância.
Não sei se os nazistas tinham por
hábito seqüestrar e violar as próprias filhas. Mas percebo a idéia.
Como conclusão, Fritzl tem
queixas do jornalismo e da forma
como é retratado pela mídia. "Não
sou um monstro", diz ele. Discordo. Ele é um monstro, sim. Mas um
monstro da comédia.
E chegamos ao problema do mal.
Por que motivo uma parte generosa dos leitores não tolera a palavra
"mal" para explicar o caso?
Questão de civilização, creio. A
estrutura intelectual do Ocidente,
na qual vivemos e pensamos, assenta na idéia otimista de que o
mal nasce da ignorância. Ou, inversamente, só o conhecimento permite uma vida virtuosa, como diria
Platão pela boca de Sócrates.
Quando os seres humanos se aproximam da luz da razão, a ignorância deixará de ter lugar nas suas
condutas. Porque o mal é fruto da
ignorância.
O Iluminismo continental do século 18 acabaria por retomar e
aprofundar essa "philosophia perennis": pelo exercício da razão, seria possível regenerar as iniqüidades que afligem a condição humana e, por arrastamento, regenerar
os próprios seres humanos. E as
grandes "teologias políticas" que
saíram desse caldo apontaram na
mesma direção.
O mal nasce da pobreza, material
ou cultural; pela redistribuição
eqüitativa dos recursos, materiais
ou educacionais, o mal será vencido e a humanidade poderá marchar rumo ao supremo bem.
E, se a redistribuição eqüitativa
dos recursos não resolve os problemas, então o mal é fruto da doença
ou da loucura. Estamos na presença da "medicalização do mal", uma
constante nos sistemas jurídicos
das democracias liberais.
É essa "medicalização do mal"
que tem crescentemente substituído a idéia terrível (e antiiluminista,
e antiotimista, e anticivilizacional)
de que o mal é sobretudo uma forma de estar no mundo. Não é fruto
da ignorância, da escassez, da
doença. É uma qualidade intrínseca da nossa humanidade. E, ao ser
uma qualidade intrínseca, é também tocada por uma sombra de
mistério: exatamente como as restantes qualidades humanas -o
amor, a compaixão, o sacrifício-
que nenhum tratado filosófico,
médico ou psicanalítico será
alguma vez capaz de explicar
inteiramente.
Os seres humanos são capazes de
tudo; de matar, torturar ou humilhar com pleno conhecimento das
suas ações. Eles são, como no poema de William Ernest Henley, curiosamente citado pelo bombista
Timothy McVeigh minutos antes
de ser executado, "senhores do seu
destino" e "capitães da sua sorte".
Mas o lado redentor é que eles
também são capazes do oposto: de
amar e de ser amados; de dar alento a quem precisa; e de condenar,
sem fugas ou desculpas, condutas
objetivamente desumanas.
Os leitores não devem temer palavras. Devem temer atos. Porque
são atos que nenhum sistema ou
terapia será capaz de erradicar da
nossa frágil e complexa condição.
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